terça-feira, 7 de abril de 2009

Pequena corrupção

Somos parados por um controle policial numa curta viagem urbana entre Mbour e Saly-Portugal. O sol já está muito baixo, e afogueia labaredas débeis nas vestes coloridas das senegalesas. Um polícia, um africano alto e elegante, muito aprumado dentro do seu uniforme, de óculos escuros, olha para nós, que circulamos muito lentamente, primeiro com distracção, executando com a mão esse gesto automático de quem passa o dia a mandar avançar carros, e depois uma segunda vez, fingindo-se de repente profundamente escandalizado com uma infracção efabulada, e começando a esbracejar e a agitar a lanterna para encostarmos, dois momentos separados pelo espaço de tempo que levou a processar a imagem de dois brancos num carro a cair de podre.

Encostamos à berma, abrimos a janela, ele aproxima-se, tira os óculos escuros e apoia as mãos lenhosas na porta:

- Bon soir monsieur. Ça va?

Pede-me a carta de condução, o seguro, e mais alguma papelada que eu entrego prontamente, não sem alguma ingenuidade, e finge consultá-la: as íris navegam para baixo e para cima, e não horizontalmente; é fácil perceber que não presta qualquer atenção aos papéis embora os folheie demoradamente. Está a tentar fabricar o crime. Como se não tivesse nada a dizer, cirandeia o carro, com um passo gingão e perscrutador, e acaba por regressar de chofre, energética e decididamente, em posse da ilegalidade que procurava:

- La lumière derrière! Não pode andar com aquilo assim – diz, asperamente, num francês pobre.

Está a referir-se à luz da matrícula traseira e quer 5.000 CFA para não me apreender a carta de condução, que agora está no seu bolso. Durante uns bons dez minutos ficamos ali a discutir sobre a luz, com ele a ameaçar fugir com a carta, como uma criança e como se esse fosse o seu máximo poder punitivo. Explicamos que evitamos sempre conduzir de noite, que não somos turistas com dinheiro, que normalmente andamos à boleia e que este carro é apenas emprestado (confusão que é impossível de fazer compreender face ao óbvio: se não somos turistas com dinheiro, o que estão dois brancos dentro de um carro, que com certeza não se move a água, a fazer numa zona de resorts de luxo?), enfim, desfazemo-nos nas desculpas possíveis, que vão esbarrando respectivamente na miséria, no sistema de pensamento local, em África, na corrupção.

E eis que o André, que está há já uns dias cheio de vontade de utilizar uma cadeira articulável de campismo da Decathlon (do género de uma cadeira de realizador) que temos dentro do carro (que nos foi emprestado) para se safar de situações do género, abre o porta-bagagens, pega na cadeira (que tampouco é nossa), e a exibe ao polícia, qual trunfo saído da manga de um mágico. O negro observa o objecto com desconfiança: é apenas uma confusão de barras metálicas e tecido comprimidos e amarrotados. O André abre a cadeira e faz um pouco de marketing:

- É altamente prática, pode-se levar para todo o lado. Olhe! Veja! Abre-se assim – e monta a cadeira – e cá está: uma cadeira super-confortável. Na Europa é capaz de valer uns bons 30€.

Mas o polícia continua a olhar para o objecto, um pouco aparvalhado, provavelmente tentando decidir-se sobre o seu real valor ou utilidade.

- Pode levá-la debaixo do braço para qualquer sítio. É extremamente leve. – continua o André, expedito, entusiasmado – Vai ter com os seus amigos, à noite, ou ao fim de semana, beber um chá, e já tem onde se sentar…

Por fim, o polícia perde a compostura:

- Pour moi?

- Oui. Pour vous.

- Ça va. Ça va. diz, com um sorriso meio envergonhado – Merci. Bonne route! – e pega na cadeira, vira as costas, e desaparece no afunilamento embaciado e violáceo dos últimos raios solares do dia.

Um dos grandes dilemas da viagem em África (talvez como em tantos outros lugares) é se levar as coisas com revolta se com humor.

Nem cem metros mais abaixo, para nossa incredulidade e desespero, somos de novo mandados encostar. Uma vez mais não há razões para isso. É mesmo só porque somos brancos e andamos por aqui a pavonear-nos num chaço de 1970. Aliás, nenhuma outra coisa justifica a repetição comportamental deste segundo polícia que, ao enxergar-nos, também se agita, excitado, furioso, num misto de quem viu um pote de ouro com pernas e um criminoso procurado a passar. Já a liturgia fiscalizadora deste polícia é ligeiramente diferente, culmina exactamente no mesmo resultado. Quer ver os mínimos acesos, depois os médios, os máximos, pisca frontal esquerdo, pisca frontal direito, pisca traseiro esquerdo, e opss! O que temos aqui?

- O senhor sabe, com certeza, que não pode circular sem a luz da matrícula traseira. – diz, tão triunfal como o outro, ciente de ter descoberto uma ilegalidade irrefutável, e, quase de certeza, um pequeno jazigo – nesse momento, o meu reflexo involuntário é olhar para a estrada, onde nem um terço dos carros que passam tem essa luz a funcionar.

Desta vez, regressamos à cortesia, e, não tendo mais cadeiras para oferecer, enveredamos dinâmica e resolutamente pelo choradinho que inventámos uma vez por acaso (embora parta de uma intenção real) e que temos vindo a aperfeiçoar e adornar com o tempo: somos dois professores portugueses, vamos para a Guiné-Bissau ensinar apenas por comida e dormida, talvez durante anos, viemos quase todo o caminho à boleia porque não tínhamos dinheiro para o avião…

- Sim, mas isso não justifica que não tenham a luz traseira da matrícula a funcionar. É muito perigoso. – argumenta, embora não seja essa a função dessa luz. Também quer 5.000 CFAs para que possamos seguir viagem.

Custa mesmo muito, é mesmo uma postura difícil de manter, especialmente porque a ela temos que recorrer quotidianamente, mas em África a revolta não serve mesmo para nada. E, pior, o choradinho possui uma eficácia tremenda. Para além de corruptos, África está cheia de corações moles. Por isso tornamos a voz lamentosa:

- Meu amigo – e pousamos-lhe uma mão camarada no ombro, ao mesmo tempo que nos assustamos com o refinamento que atingiu a nossa arte de sedução moral – Vamos falar honestamente consigo. Nós sabemos que a situação aqui é muito difícil, mas nós não somos como os outros turistas que andam por aqui. Nós estamos aqui para ajudar, para, convosco, com os africanos, ajudar a construir uma África melhor. Viemos aqui dar as nossas mãos e a nossa cabeça em troca de nada. Compreenda a nossa situação, e, por favor, deixe-nos ir andando. Esse dinheiro que nos pede faz-nos mesmo muita mossa.

A sensação que me dá a expressão abananada do polícia, e a operação de comoção que a transforma [a expressão] às nossas palavras (para nós, gastas), é a de alguém que, de repente, onde tinha visto uma infracção, passou a ver emoções, onde tinha visto cifrões, passou a ver um homem, um homem como ele.

Sem palavras, visivelmente atrapalhado – e é isto que impressiona – o polícia indica-nos com gestos confusos que podemos partir.

É exactamente porque a lei aqui é subsidiária de imperativos mais fortes, porque a corrupção do polícia existe ela própria em função de uma conjectura de miséria, que nos é possível apelar com eficácia a outras hierarquias de valores, e que, nomeadamente, a comunicação do contexto individual em África, ou seja, a história pessoal contada e partilhada, possui esse peso fortíssimo na relação entre os homens que está no seio dessa lógica de compadrio, de afectuosidade, que mina as instituições de todo o continente. Colocarmo-nos moralmente acima da lei (ou situacionalmente acima da lei) e, neste caso, materialmente abaixo das elites – europeias ou africanas –, é colocarmo-nos exactamente no mesmo plano de acção que o polícia. A corrupção em África não é corrupção moral, é constrição de sobrevivência, a lei não é categórica, é sempre adaptável à situação.

– Desconfio que para o primeiro também não tinha sido precisa cadeira. – diz-me ironicamente o André, já dentro do carro em marcha, não sem acreditar piamente nisso.

2 comentários:

  1. Francisco,
    tenho lido alguns de seus lindos textos. Eu acho que nos conhecemos em Bissau, na Tiniguena. Eu sou Leny, a professora nipo-brasileira, da Universidade de São Paulo, que estava trabalhando na biblioteca dessa ONG.
    Continue a escrever, gosto muito de tuas reflexões.

    abraços e boa viagem

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  2. Olá Leny,
    Que surpresa! Lembro-me perfeitamente de si... mas..como veio aqui parar? Não sei como foi, mas fico muito feliz que me tenha encontrado, e que tenha gostado do que leu.
    Obrigado pelo seu incentivo.
    Já agora, como correu a sua estadia em Cabo Verde? Felicidades para o seu trabalho.
    Um abraço

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