quinta-feira, 16 de abril de 2009

Sibéria e Alentejo

A tradição bíblica ensina-nos que a felicidade do primeiro homem antes da queda consistia na ausência de trabalho, isto é, na ociosidade. O gosto da ociosidade manteve-se no homem réprobo [detestado, malvado], mas a maldição divina continua a pesar sobre ele, não só por ser obrigado a ganhar pão de cada dia com o suor do seu rosto, mas também porque a sua natureza moral o impede de encontrar satisfação na inactividade. Uma voz secreta diz ao homem que ele é culpado de se abandonar à preguiça. E, no entanto, se o homem pudesse achar um estado em que se sentisse útil e em que tivesse o sentimento de que cumpria um dever, embora inactivo, nesse estado viria a encontrar uma das condições da felicidade primitiva

Tolstoy, Guerra e Paz, Edições Europa-América [péssima tradução]


Tolstoy desconhecia o Sul. Tivesse apenas ultrapassado o Marvão, entrevisto as planuras que sitiam Portalegre, e ter-se-ia admirado. Teria aí encontrado os primeiros exemplares desses velhos secos, magros e encarquilhados como pulgas, minguados ao extremo da caricatura, embrulhados na sua pele pedregosa, curtida pelo sol, fissurada por rugas verticais produzidas talvez por essa incidência constante e diagonal do sol, pele que já não é pele bronzeada mas sim pele cozinhada, acastanhada para sempre, camada após camada, até aos ossos; Tolstoy teria visto de perto esses homens transformados em estátuas, que estão e sempre estiveram recostados na mesma cadeira do mesmo alpendre da casa, nas mesmas praças das mesmas aldeias, nos mesmos degraus das mesmas portas, condenados a ai permanecerem até ao fim dos tempos, de quando em vez deslocando uma peça de dominó.

Em Marrocos e na Mauritânia essa imobilidade agrava-se. Atravessam-se montanhas e sucedem-se os encontros com estes quadros do Hopper vivos, estampados nas aldeias de colmo, pincelados nas bermas das estradas, desenhados em paisagens marcianas, no meio de nenhures, à beira de estradas nacionais por onde não passa vivalma. Muitos desses homens, neste Sul, já nem sentados se aguentam. Aparente medida estatal, os países foram cobertos de esteiras. E a gente usa-as. Discute o Corão, discute casamentos, bebe chá, dorme, e outras vezes está tudo calado.

Centenas de quilómetros mais abaixo, os feriados que calham ao fim de semana passam para Segunda-feira porque as pessoas estão fatigadas das suas profissões difíceis: o paquiderme que vende rebuçados numa banquinha de esquina, dias, anos a fio, está cansado; o vendedor de amendoins está cansado, o contabilista do restaurante que não faz outra coisa senão anotar, de hora a hora, a garrafa de Fanta vendida, utilizando repetidamente a máquina de calcular para subtrair o preço vendido ao preço comprado e confirmar a certeza dessa cifra imutável repete “C´est dur, l´Afrique c´est dur”; um monstro de músculos de rabo grudado a um banquinho de criança a jogar damas abre os braços, abraça a rua, e diz “Aqui não há emprego” e eu não acredito que nos últimos anos tenha procurado para além dela; as lojas, as barbearias, os pequenos comércios não têm ninguém lá dentro: entra-se, inala-se o silêncio, ouvem-se as moscas, e depois espreita-se ou chama-se. Estão a dormir num compartimento interior, ou do outro lado da rua com os amigos, no país dos sonhos, e alguém os tem que ir chamar, para que nos cheguem a bocejar e nos atendam.

Talvez seja por isso que, quanto mais perto do equador, mais nos disparam variações convictas das seguintes sugestões:

- Mas porque não ficam aqui? Sentem-se, hoje dormem cá, vão aprender a nossa língua… – depois dizem uma das frases que mais ouvi em todo o Senegal (mas também na Gâmbia e em Bissau) – Et on va discuter! Beaucoup discuter. On va bien discuter.

Mas… Afinal… Conversar ? Conversar o quê? E porquê? A que propósito? Proposta estranha, que pressupõe já a certeza tácita da fluência de um diálogo interminável, apontado à morte, destinado a acontecer independentemente dos interesses, da religião, das opiniões ou tão somente das pessoas intervenientes. Vai-se apenas falar, e muito, o resto não interessa. Ou então nem falar… Vai-se apenas praticar a amizade, ou seja, ver o tempo passar da mesma esteira. Até à morte.

E, realmente, porque não ficamos já aqui e deixamos de arranjar chatices, fretes, problemas, aborrecimentos, canseiras, e, realmente porquê a viagem (como quem diz, porquê o movimento)? A vida não passa de uma sesta ao sol do meio-dia imperturbada pelo cenário grandioso que a enquadra. Se a imortalidade é uma estátua numa praça do mundo, basta que essa sesta seja suficientemente tranquila para nos transformarmos em pedra.

Nunca estive em Moscovo, em S. Petersburgo, na Sibéria, mas gostava de conversar com Tolstoy sobre esses lugares, e de lhe tentar explicar o estranho fenómeno que se dá a partir do Alentejo.

Parece que essas vozes secretas que culpam os homens da preguiça começam a perder forças precisamente lá para os lados de Portalegre.

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