quarta-feira, 1 de abril de 2009

Encandeamento

A nossa velhinha quatrocentos e quatro não deveria circular de noite: os dois tipos antiquados de luz de que é dotada são ambos confundidos com máximos, o que provoca constantes medidas de retaliação da faixa contrária, que dá o tudo por tudo para nos tentar encandear; o tablier não tem luz, pelo que nunca sabemos se estamos a ficar sem gasolina, se a temperatura do carro está a um passo de mandar o motor desta para melhor, ou a que velocidade vamos; e fazer estradas senegalesa, uma espécie de buracos onde bóiam algumas poças de alcatrão, à noite – naquela noite – não parecia um desafio à altura da nossa máquina, à beira do seu terceiro problema de mecânica numa semana. No entanto, como em tudo, são as palavras dos homens que ditam as leis

O Sidi, com essa descontracção africana que faz parecer a cautela, a precaução, e todo esse espírito de essência preventiva que os nossos europeus pais tiveram tanto trabalho em nos inculcar, paranóias ridículas de branco, convence-nos a fazermo-nos homens e a galgar os 200km de estrada de Kaolack até Saly-Portugal, lar de um primo rico, um recém-reformado da primeira liga de basquetebol francesa, e herdeiro de uma cadeia de supermercados na Costa do Marfim. Verdade seja dita que a desarmante argumentação do Sidi se resume à repetição exaustiva de variáveis da seguinte ideia:

- Chill out guys. This mate, you know, he has a big pool, and we go, and tomorrow we´ll just, you know, relax. – Mas a simplicidade da ideia não quer dizer que a argumentação seja menos válida. Mais que as palavras dos homens, é a sua entoação que faz as leis.

O Sidi é um senegalês emigrado em Londres que voltou faz uma semana para ver o filho recém-nascido, mas que aproveitou a nossa presença (meteu conversa connosco num ciber-café de Kaolack) para se pisgar de casa, depois de perceber que não sabia pegar no miúdo e de constatar, com surpresa, ao fazer disparar o volume de reggaeton na aparelhagem da casa, que deveria ter voltado uns meses mais tarde se queria encontrar um ser que reagisse à música.

Sob uma chuva de interrogações sérias e confusas que nos dirige às escondidas o pai da mulher do Sidi – Mas quem são vocês? Amigos do Sidi? Mas de há muito tempo? Conhecem-se de Londres, suponho… – que não percebe de onde é que nós saímos, lá mergulhamos nós – eu, o André, o Mark e o próprio Sidi – na noite senegalesa, em direcção ao Algarve local. Se amanhã vamos relaxar, porque raio é que o carro ou o puto hão-de ser impedimento? Às vezes há que pensar com este tipo de lógica nas coisas, e, com o Sidi ao lado, isso torna-se fácil.

As condições de condução cedo se revelam inigualavelmente más. O vidro sujo (de uma camada de sujidade irremovível, com quase quatro décadas de incrustamento) distorce tudo (já distorcia de dia) e, com os máximos dos outros constantemente sobre nós, torna-se praticamente impossível enxergarmos mais que dez, doze metros de estrada, e rapidamente nos resignamos à lenta e penosa destruição do carro. Eu estou todo debruçado sobre o volante, tal como o André, que vai comigo à frente. Somos nós os futuros pagantes das hipotéticas reparações do carro e, juntos, vivemos intensamente cada buraco ultrapassado e vai-nos directo ao coração o estampido de cada pequena cratera atingida.

- Pequenino que ele fica, hã?

- Pois é. Pois é. É como se me martelassem o próprio peito. São granadas de morteiro a caírem à nossa volta.

- Pois. Isso, isso.

Ao mesmo tempo, no banco de trás, mas numa outra dimensão, o Mark, o inglês, visivelmente empenhado a aprofundar o surrealismo da sua incrível história com todo o tipo de detalhes, vai contando ao Sidi (que tem aquele tipo de boa-disposição inofensiva que nos faz querer contribuir para a aumentar ainda mais) sobre um amigo (também inglês) que incrustou pedras preciosas no pénis numa prisão no Nepal apenas com álcool, uma agulha, uma garrafa de whisky goela abaixo, e a gentil habilidade cirúrgica de um criminoso nepalês. E a cada minúcia da história, o Sidi vai replicando como um inglês nativo:

- Whicked, man. Wicked…

- And he says this was the best thing he ever did in his life. Every woman loves it! – exclama o Mark.

O diálogo, já de si deslocado de tudo, é remetido ao esquecimento aos 50 km de estrada, quando me dou subitamente conta que estamos completamente sem travões. Encosto à berma, engato a primeira, preparando-me para parar, o carro rosna de esforço protestando contra a mudança demasiado baixa, e puxo o travão de mão para concluir o objectivo de o imobilizar. Mas nada: o carro continua em movimento porque o travão de mão também não funciona. Atónito, sou obrigado a voltar à estrada, e só muito gradualmente me vou dando conta que, ou nos lembramos de uma ideia genial, ou a nossa caixinha tem todos os ingredientes para se tornar numa cripta de metal.

- Que se passa? – vai perguntando toda a gente. – Que é que estás a fazer?

- Pessoal, estamos sem travões. – acabo por responder.

- Sem travões? Como sem travões? Ou melhor: quão sem travões? – pergunta o André

- Estás a sentir alguma coisa? – pergunto-lhe.

- Não, porquê?

- Porque neste momento o meu pé está a empurrar o travão completamente para dentro.

- Nãaao! – exclama o André, levando as mãos à cabeça – E o travão de mão? Não funciona pois não? – acrescenta (ainda não mo disse, mas ele próprio já o tinha experimentado noutro dia).

- Pois não. Era isso que eu estava a tentar fazer.

- So how do we stop the car? – pergunta o Mark.

- We don´t! – responde o Sidi, com uma gargalhada deleitada, sem, aparentemente, encontrar na situação a mais mínima razão de inquietação, e pondo-nos a olhar para ele com uma estupefacção, e, por instantes, com um calafrio.

Discute-se um pouco, e decide-se que na próxima povoação cada um sairá do carro, e que o tentaremos imobilizar com os pés, para posteriormente se proceder a uma operação de mecânica simples que consiste em extrair, um a um, o ar dos quatro travões, e que pode estar a afectar o sistema.

Até lá [à povoação seguinte] seguimos caminho, já que não podemos fazer outra coisa, e, a partir daqui, a viagem faz-se lentamente, com o carro engatado em segunda, para o impedir de superar os 30-40km/hora, as palmas das mãos suadas, as unhas cravadas aos assentos, e os quatro pares de olhos grudados ao asfalto. Felizmente, durante um bom pedaço de estrada, esta mantém-se esvaziada de tráfico no nosso sentido. Só uns vinte minutos mais tarde a situação se volta a agitar: da faixa contrária, as luzes dos automóveis começam a chegar estranhas, repentinas, saídas do nada, como se houvesse um qualquer obstáculo fixo na estrada. Mais adiante, apercebemo-nos da causa do fenómeno: à nossa frente circula, a não mais de 30km/hora, um enorme camião de mercadorias completamente sem luzes.

- Cars without lights, others without brakes, holes on the road that can break your 4x4 in two. Beautiful, man! – diz o Sidi, e ninguém responde, mas a descontracção com que o diz é tal que me faz sentir, pela primeira vez, que, já que estou metido em tão bizarra situação, é um absurdo ainda maior não lhe retirar alguma satisfação

Engatada em primeira, deixamos a corajosa 404 aproximar-se até a uns 15 metros do camião, e aí tentamos seguir atrás dele. Mas o tipo é um perigo: anda lentíssimo, não se consegue distinguir da noite (porque não tem luzes!), e, sobretudo, executa travagens bruscas para se desviar dos buracos. Numa delas quase nos enfiamos na sua traseira.

- Oh ho ho. This is warming up. – é o comentário do Sidi. Desta vez, rimo-nos timidamente, mas rimos. O Sidi não dá hipótese. Lentamente, acabaremos por nos deixar contagiar pela sua descontracção.

Este quase acidente decide o plano: há que ultrapassar o camião. O problema é que, uma vez iniciada a manobra de ultrapassagem, não poderemos parar (não há travões, convém lembrar), mesmo que venha um carro do outro lado. Se tivermos a sorte de escolher mal o timing ou de apanhar uma zona de buracos, bem, é melhor nem pensar nisso… Mas, sobretudo, há que contar com o facto de o carro ter quarenta anos e nada mais nada menos que 1 cavalo, o que não o torna propriamente na máquina de ultrapassagem mais feroz das redondezas. Bem, o melhor é não pensar nisso também. De qualquer forma, pensa-se nisso tudo, mas cada vez menos na dimensão de risco e de perigo de todo o processo. O quase-acidente e a iminência de uma situação perigosa têm o condão de nos injectar no sangue uma adrenalina que estimula as ideias, e que nos obriga a abandonar consideravelmente uma certa bolha de normalidade que costuma cobrir todos os momentos das nossas vidas, mesmo em viagem. O carro galga o alcatrão e, cada vez mais, nada mais há na nossa existência que o momento presente, e esse mesmo tapete cinza a ser engolido aos nossos pés. Nesse afunilamento do Universo, as nossas personalidades mutam-se, e deixamos de ser figurantes numa viagem, tal como o carro, que, não se sabe bem como, é baptizado: Cherry.

- Go Cherry, go! – grita-se. – Don´t let us down baby.

E a máquina ruge e arranca. O André, com o isqueiro, que está quase sem gás, cobre de clarões amarelos o cockpit, para se tentarem perceber as mudanças que, na Cherry, só se podem dizer com certeza a partir de um ponteiro no tablier.

- Iiiihaa! – grita o Mark quando o carro descola.

- Wooooow. – o Sidi

Cada um repete uma respectiva onomatopeia nos longos e esticados segundos em que a Cherry se esparrama toda para cima do camião. Entrámos definitivamente num estado de graça momentâneo. Dentro deste habitáculo fantasma que impressiona a cada metro que se mexe, somos um grupo de criminosos a fugir à polícia, somos um bando de universitários americanos alcoolizados a caminho de uma festa, brilhantina e bem vestidos, confiantes no efeito da nossa máquina barulhenta sobre as raparigas. Mas depois olha-se lá fora e está uma lua cheia que envolve e aninha a sombra inconfundível de um embondeiro. Não, afinal não sei dizer. Somos outra coisa qualquer. Dentro desta banheira, bem podemos estar a viajar no tempo. Ah, não interessa. E a prova é que toda a gente sabe que devíamos parar e que, tentando, até talvez o conseguíssemos, mas ninguém ousa sugeri-lo. A tripulação está contente, sente-se viva, e quer continuar. Está tudo fora do sítio. Falta uma banda sonora de um qualquer épico do Spielberg. Ah, se a vida fosse cinema, víamos menos televisão.

Quando a ultrapassagem termina, com sucesso, urramos os quatro ao mesmo tempo, mas mal temos tempo para respirar. Ao fundo, já se avista a aura de luz de uma aldeia e, espevitadíssimos, delineamos excitadamente o briefing da missão: eu encostarei à primeira berma longa e jeitosa que se vir, depois reduzo de segunda para a primeira, deixo o carro atingir a velocidade mínima possível, engreno o ponto morto, saem os outros três do carro e, como nos Flintstones, serão os pés a fazer de travões.

Revisto o plano, entramos na aldeia e não tarda muito a que uma bermazinha impecável, que nos parece uma pista de aviões, se apresente. Fazemos tudo como planeado, respiramos fundo, e o Sidi grita:

- Go boys! It´s now or never! Ah ha ha!

Sai tudo do carro (menos eu, que permaneço ao volante) solas contra a terra, e o nosso meteorito começa a abrandar. Porém, para nossa surpresa, a Cherry faz questão de demonstrar que não se trata de um pedacinho de lata como os carros de hoje, mas de um mulherão de ferro, bem mais pesado do que esperávamos.

- Buraco à frente! – grita o André, de repente.

De facto, uns trinta metros avante, há um barranco que resvala para um riacho (a estrada segue por uma pequena ponte). Engatilhados por este grito, começamos todos a disparar instruções, a esbracejar, e a fincar redobradamente os pés na terra. À nossa volta, sentimos os vultos dos aldeões a virarem-se à passagem da nossa algazarra andante, para eles, incompreensível. Mas a Cherry, mulher teimosa, não pára mesmo.

- Mais força, mais força, porra. – grita o André, com violência, como se tentasse espicaçar os seus homens – Rápido, que vamos direitos ao buraco!

Até que a coisa estanca mesmo, uns cinco metros antes do pequeno abismo. Quando desligo o motor, ninguém quer acreditar: precipitamo-nos uns para os outros a respirar fundo, abraçamo-nos, e rimos. Uau, isto valeu umas férias.

- Guys, this is the most wicked trip ever. – diz o Sidi, imensamente satisfeito, como se nos desse os parabéns de alguma coisa, e, depois, quase comovido, acrescenta algo pelo qual não nada fizemos para merecer, mas que não deixa de fazer todo o sentido dizer – You guys are great.

E replicamos, com honestidade:

- Tu também Sidi. És um tipo às direitas.

No dia anterior eu tinha visto um filme do Clint Eastwood. Durante o filme, passado na II Guerra Mundial, um soldado explica a outro homem que já não pode travar amizade senão com um soldado. De facto, se uma ultrapassagem perigosa precipita assim os braços e as palavras de quatro homens, o que não causará uma guerra?

Mas ainda só passaram 100km. Faltam os outros 100. Abrimos o capo e damos com uma fuga no pequeno depósito do óleo dos travões, que está vazio. Roda a roda, fazemos esguichar o resto do óleo do sistema, para lhe extrair o ar, ao mesmo tempo que repomos o óleo no respectivo compartimento. Entretanto, imploro ao Mark que vá comprar jantar, que os homens precisam de comer, e que esta viagem nos está, apesar de tudo, a assassinar os nervos e as forças, e é imperativo repor energias. Vinte minutos depois estamos de volta à estrada, e vinte e cinco minutos depois estamos de novo sem travões, entregues aos caprichos da estrada, mas agora a notícia já cai quase como uma bênção. Já ninguém queria um final de viagem seguro e tranquilo. É preciso acabar em grande. O André abre a janela, mete o pescoço de fora do carro, e berra à lua.

Depois, para meu desespero, confirmo a ideia feita de que nunca se pode mandar um norte europeu comprar comida. Muito naturalmente, e embora não comamos desde o almoço, o Mark distribui a sua noção de manjar revitalizante constituída por três bolachas de chocolate, uma bananinha, uns goles de uma Seven Up e um chupa-chupa.

Atabalhoado a contornar buracos, e a desembrulhar o papel do meu chupa-chupa, sinto qualquer coisa cair num buraco na base do carro, a meus pés. Parece-me que pode ter sido a carteira, e só espero que não seja o passaporte. Mas nem vale a pena tentar saber: é impossível parar... No entanto, por segundos, não me importo, sou sábio: e se for? O que é que isso interessa? Todo o caos do mundo me parece bem-vindo.

Mais à frente, detectamos de novo o camião fantasma a circular (ter-nos-á certamente passado enquanto estávamos parados a reparar o carro).

- Man, this trip… – diz o Sidi, olhando com assombro para o monstro invisível que se agita de novo à nossa frente – You know what I mean? – continua, tentando meter alguma gravidade no que diz. Mas não consegue. Por fim desata-se a rir, histérico, verdadeiramente feliz – This is really really crazy shit.

Nesse instante, passamos por um controle policial a toda a velocidade e alguém se lembra, pertinentemente, de perguntar:

- E se a policia nos manda parar?

- We say bye-bye. – diz o Sidi, espirituosamente – We can´t stop, can we? – rimo-nos.

- A Cherry é uma senhora. – diz o Mark – Os policias não chateiam as senhoras. – rimo-nos redobradamente.

Nos momentos em que estes diálogos rápidos se sucediam, faltavam ainda 80km para Saly-Portugal, e ninguém tinha uma certeza genuína quanto ao final da viagem. Mas, mais importante do que isso, ninguém estava preocupado. Às vezes, ia tudo calado, a pensar veloz, veloz, e alto, tão alto que se conseguiam distinguir os pensamentos do Mark, do Sidi e do André. Tínhamos novamente 15 anos. Cada trago de ar inspirado pelos nossos pulmões arrepiava-nos; a vida, comíamo-la aos bocados, vinda de fora da janela, a entrar-nos na boca com o vento.

E o responsável por isto tudo? A verdade é que nunca se chegou perceber bem se foi o carro se o Sidi.

Go Cherry, go!

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