terça-feira, 14 de abril de 2009

Sanitas sem personalidade


Muro feito de portas, Senegal.


Capa da edição portuguesa de Elogio da intolerância, de Slavoj Zizek.

Em O Elogio da Intolerância (Relógio de Água, 2006), no Prefácio à Edição Francesa, Slavoj Zizek – um aclamado pensador contemporâneo – utiliza “os três tipos básicos de casa de banho” como metáfora de modelos ideológicos de como cada indivíduo de deve comportar em relação à sua própria merda, e, em certa medida, como “expressões de três atitudes existenciais diferentes”.

Nas casas de banho alemãs tradicionais, o buraco onde o cocó desaparece depois de se puxar o autoclismo é lateral, de tal maneira que o cocó começa por ser exibido aos nossos olhos para melhor poder ser farejado e inspeccionado em vista da eventual detecção de alguns indícios de má saúde; no modelo francês, pelo contrário, o buraco fica bem no meio e em baixo, o que significa que a merda deve desaparecer o mais rapidamente possível; finalmente, a casa de banho americana (anglo-saxónica) apresenta uma espécie de síntese entre as duas outras, uma mediação entre esses dois pólos opostos – a sanita está cheia de água, de tal maneira que o cocó flutua à superfície bem visível, sem que por isso deva ser examinado…

Nestas sanitas, para Zizek, podemos distinguir “a minúcia reflectida alemã, a irreflexão revolucionária francesa e o pragmatismo utilitarista moderado inglês”; mas também, e respectivamente, “o fascínio contemplativo ambíguo (…); a tentativa rápida de se desembaraçar do desagradável excesso da maneira mais rápida; a abordagem pragmática que consiste em encarar o excesso como um objecto comum a suprimir da maneira apropriada”.

Com esta ilustração, o autor pretende referir-se à persistência da ideologia num mundo ultimamente dito pós-ideológico, utilizando-a como introdução às dificuldades de construção da Europa e de uma identidade europeia. Em suma, está a comunicar-nos que estamos atolados em ideologia literalmente até à merda, e que esta é uma das dificuldades humanas essenciais na convivência com o outro.

Ler esta reflexão em solo africano não deixa de ser extraordinário, especialmente quando, volvidas cinco nações deste continente, as três sanitas ideológicas ocidentais se mantêm insistentemente confrontadas com a falta de espessura da personalidade do simples buraco africano.

Se, por um lado, esse triste buraco testemunha um atraso na preocupação sanitária, a sub-sofisticação da indústria higienista, ou, tão simplesmente, a pobreza, quando experimentado país após país, casa após casa (mais rica, mais pobre, de intelectuais, de políticos, de pescadores, com parabólica e plasma, sem parabólica e plasma), testemunha também o abismo que separa as diferentes profundidades de contaminação reflexiva da sociedade, denunciando um ocidente ocioso e sobre-mental que há muito que, como um copo de água parado e estafado, cheio de partículas reflexivas em suspensão, vai deixando que elas se sedimentem lentamente, até percorrerem toda a fundura do copo, se misturarem umas com as outras, e atolarem de uma mixórdia de palavras os alicerces da vida.

A própria metafísica da merda, aflorada por Zizek, (ou por mim, neste momento – e aqui é preciso situar-me: muito dificilmente estaria a escrever isto se fosse africano), é o corolário de um movimento de reflexão (e, à reflexão, no sentido ocidental do termo, chamemos – simplisticamente – o acto de dar e atribuir palavras à realidade. A reflexão – especialmente no sentido ocidental – é sempre um onanismo vocabular, uma paixão desmedida por ler, escrever, produzir discursos sobre, enfim, produzir dialéctica) verdadeiramente descontrolado (para além da óbvia curiosidade psicológica do humano pelo obsceno, que será porventura tão comum num africano como num ocidental, mas sobre a qual não me sei pronunciar): o ocidente é actualmente uma espiral de dúvidas, suspeitas e porquês (que começou com os “mestres da suspeita” - Nietzche, Marx, e Freud - embora tenha as suas raízes no pensamento grego, e persiste no sociólogo, no colunista, no artista, em Zizek, numa juventude ociosa e profundamente tagarela e opinativa – o chamado Slacker – retratada no filme homónimo que a denominou, de Richard Linklater), espiral essa cujo poder de corrosão foi varrendo consigo religiões, tradições, fundamentalismos, morais, tabus, todo e qualquer obstáculo ao pensamento, mas também (para o bem e para o mal) todas as referências sobre aquilo em que se deve pensar, ou aquilo em que vale a pena pensar, abrindo isto as portas à dialéctica do lado obscuro – ao esgoto, à merda. Mas aqui talvez me esteja a referir apenas (e muito superficialmente) às condições culturais de possibilidade de sobre-verbalização das camadas subterrâneas da vida, e não ao que causa essa direccionalização do pensamento. Ou seja, mesmo considerando um campo de reflexão absolutamente livre, é ainda necessário compreender porque o que é que faz a reflexão dirigir-se para determinada coordenada desse campo.

Para isso, regressemos a África. Aqui, claro, também existe escatologia. O corpo sujo é problematizado e verbalizado (e também com um mínimo de minúcia) e a regra não será de todo – daquilo que conheço – uma África paranoicamente pudíca; mas o seu tratamento [do corpo] – verbal e de acção – revela uma naturalidade pragmática que não passa disso mesmo. Os dejectos são qualquer coisa que se remove com um balde, que se faz em determinado compartimento, e que se limpa de determinada forma. E não há muito mais a dizer sobre eles.

O que torna então possível que os europeus, que nunca vêem a merda, que nunca a cheiram, que excluíram a merda da sua vida, acabem a esmiuçá-la em discussões, a teorizarem e conceptualizarem sanitas, e que os africanos, quando todas as manhãs chegam à casa de banho e se têm que confrontar com os dejectos do outro, não vejam qual é o interesse em falar sobre isso? A explicação parece-me simples, e à vista de todos: o contacto (ou a falta de contacto) com a própria merda.

A diferença entre o prazer intelectual que a Europa possa ter em discutir a merda (tema recorrente no cinema, na filosofia, na literatura) e esta atitude africana, parece-me a medida exacta do abismo que separa a vida africana – uma vida real – da vida neuronal da Europa contemporânea. “Bem-vindos ao deserto do real” (é assim que Zizek nos introduz o ocidente num outro livro), um lugar onde o cérebro tomou conta do corpo, bem-vindos à teia urbana de apartamentos, esse paraíso intelectual onde habitam aqueles que substituíram a vivência da vida pela da cultura na acepção FNAC do termo: a conversa substituída pelos livros, o cão pelo tamagotchi, o som do tempo presente, da rua, pela música num cd ou num mp3, o movimento corporal pela viagem através do ecrã, uma Europa irremediavelmente condenada a ruminar-se a si própria e a tentar recuperar-se violentamente – e é este aquele que me parece um dos movimentos fundamentais do pensamento ocidental contemporâneo – por meio de temáticas em relação às quais um africano não teria qualquer problema em falar, mas nas quais dificilmente encontraria prazer em se embrenhar, ou interesse. É na espeleologia mental do esgoto humano que está a diferença, e os exploradores dessas grutas, dessas cavernas, são precisamente aqueles que delas não têm um conhecimento suficientemente directo.

Um jovem em África, o mais estudado, informado, com o menor contacto com a miséria e com a maior fome de saber possível, quer ser engenheiro de automóveis, advogado ou médico. Não poeta, criador de instalações, (instalador?), psicanalista, sociólogo ou filósofo; quer, quanto muito, ser artista figurativo mas jamais abstracto; repórter fotográfico mas nunca fotógrafo experimental. Ao contrário de nós, dificilmente encontrará poesia num subúrbio africano pós-apocalíptico, meio devastado, cheio de lixo, num muro de uma casa feito de portas de carros. Apenas encontrará miséria.

Enquanto a Europa resvalou para uma curiosidade mórbida (quem diz sobre fezes, diz pornografia, morte, psicanálise, violência, diz os subterrâneos e masmorras da mente, diz essa recém-adquirida capacidade de milhões de ocidentais de fomentar patologias psicossomáticas mentais criando-as apenas de tanto falar delas) que emergiu de um progressivo assepticismo de superfície (que está tanto na volatilização da merda no objecto sanita, como na volatilização do seu cheiro – leia-se, no WC Pato –, como quando nos entregamos à actividade de efectivação da separação entre a realidade real e aquilo que oferecemos aos nossos olhos e mãos para verem e sentirem, tal como quando nos dedicamos a essa definição FNAC de cultura) que se foi naturalmente tornando artificial e entediante (e possibilitador de múltiplos fenómenos, tal como o sucesso de um filme como o Matrix – cuja tagline é o título dessoutro livro de Zizek –, mas também a sua própria incubação: o facto é que é absolutamente irreal pensar a criação do universo do filme, por exemplo, à sombra de um cajueiro em plena Gâmbia.), os africanos nunca saíram de um «terraterrismo» que agora nos olha de longe e com espanto: em que buraco é que estes europeus se foram meter? De que estão eles a falar? Terão eles perdido toda a noção da vida?

Sobretudo, a realidade ocidental tornou-se distante através da palavra (uma vez mais, é necessário acrescentar que a palavra não é uma categoria universal, mas que é utilizada de formas culturalmente específicas. É exactamente por essa razão – pela capacidade que a palavra tem de criar um duplo, um distanciamento da realidade, de, ao verbalizar a realidade, se constituir como um necessário segundo mundo, este feito palavras, decalcado sobre ela – que a filosofia oriental repudia a palavra, que elogia o mestre que ensina sem falar, que privilegia a observação da natureza, e que práticas silenciosas como a meditação e o Yoga ai emergiram), que continua a utilizar como âncora única de salvação de problemas que nada têm a ver com ela.

A África que eu tenho visto, tão impulsiva como esperava, tão espontânea como se imagina, tão abrutalhada e barulhenta quanto pode ser a experiência humana, obriga-me a perguntar, a esta distância, sobre a utilidade que de um grupo de auto-ajuda, do momento em que um paciente explica o seu problema ao seu psiquiatra, sobre a utilidade de um casal a conversar com o seu terapeuta conjugal, de um sociólogo a diagnosticar numa sociedade os seus atritos.

Podem as palavras curar os problemas que elas mesmo criam? Fala-se demais.

4 comentários:

  1. Francisco

    Texto muito corrosivo que permite muitas palavras sobre ele próprio.

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  2. Sem dúvida! O texto é auto-crítico. Ou não estivesse eu em África a escrever sobre "ela".

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  3. Aparte a metafísica da merda... ou metamerda, saneamento básico, tout court, não será uma conquista da Humanidade? uma etapa fundacional da Saúde Pública?
    já agora, este tema escatológico faz-me lembrar a delirante cena do miúdo na casa de banho indiana (mumbay), em slumdog millionaire, um buraco, mas lá do alto. não digo mais, quem já viu o filme, sorrirá de certo ou dará mesmo uma gargalhada, os que ainda não viram, decerto que ficarão com cuirosidade em ver.
    de qualquer modo,um texto para pensar, Franciso, e qualquer desculpa é boa para pensar, até a merda.
    abraço

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  4. Ainda não vi o filme do Danny Boyle, mas a curiosidade fica, com certeza, apesar de, aquando do meu regresso, provavelmente me querer manter num meio tão desinfectado e aromático tanto quanto possível.
    É também possível que, dentro de uma casa de banho cheirosa, deixe de conseguir pensar, mas isso é porque, justamente, a merda é desculpa demasiado fácil para o fazer.

    Outro abraço

    Ah, e sim (!), plenamente de acordo, África precisa de sanitas, modelo francês ou chinês, tanto faz! Não é por acaso que este continente é o paraíso da vida bacteriana.

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